“Quando eu ouço The Raincoats eu me sinto como se eu fosse um
intruso espiando em um sótão,no escuro. Estamos juntos na mesma casa velha e eu
tenho que estar completamente imóvel ou elas vão me ouvir espiar por cima e,se eu for pego - tudo será arruinado porque é a coisa delas.” - Kurt Cobain.
Ao contrário de muitas bandas punk que pregavam os 3 acordes
e a não-evolução musical mas que na
verdade eram músicos experientes e habilidosos, as Raincoats aprenderam mesmo a
‘tocar tocando’, na frente da platéia, começando literalmente do zero. Possuindo uma postura tímida e não utilizando artifícios
visuais (tocavam com roupas do dia-a-dia e sem maquiagem), muitas vezes parece
que faziam música para si mesmas, como Kurt Cobain escreveu no texto acima. Uma
das forças mais inventivas do pós-punk , atingindo um grau de personalidade em
que os colegas de época e os novos aspirantes
apenas sonha(ra)m em alcançar.
O álbum de estréia, epônimo, veio em 79, lançado pela Rough
Trade. Ouvindo, dá prá imaginar que os
ensaios devem ter sido intensivos, porque o entrosamento é total. "Raincoats",
o disco, é cheio de garra, frescor, energia, vontade. Os vocais juvenis, a
guitarra ritmica forte e cheia de boas idéias da portuguesa Ana da Silva, o baixo destacado da Gina Birch, os violinos
velvetianos de Vicky Aspinal e a bateria
empolgante e precisa de Palmolive (então recém-saída das Slits) fazem desse um
álbum em que a extrema simplicidade só reforça sua natureza fenomenal. Um disco
que faz apaixonar fácil, de não querer ouvir outra coisa durante muito tempo. Tudo
aqui é destaque, sendo que se for para citar músicas e indicar,vai as que eu
mais gosto então: a tríade“No side to fall in”, “Adventures close to home” e “Off
duty trip” (as mais non-stop do disco, que vem em sequência desfolegante), “Fairytale
in the supermarket”(que saiu originalmente em single, mas que nas edições posteriores
foi incorporada ao CD), “In Love”...
“The void” é uma das melhores músicas sobre a adolescência já feita. É
como se fosse o Holden Caufield (o personagem confuso do clássico livro “O apanhador do
campo de centeio) musicado. Poucos versos, poucos acordes, baixo à “Walk on the
wild side” e temos um verdadeiro monumento do minimalismo. Incrível o poder
desse som e o universo de sensações que consegue causar.
O momento mais descontraído vem com o cover de “Lola”, do Kinks.
Aqui a clássica música de Ray Davies que fala de um affair não-intencional com
um travesti é colocada para explicitar questões de gênero sexual. Elas não
usavam a política num sentido mais panfletário, preferindo sempre fazer isso
por meio de histórias, como também na letra de “Off Duty Trip”, que fala sobre
um caso de estupro em que o juiz foi complacente para não prejudicar a carreira
militar do oficial acusado.
Após a estréia Palmolive, que já era surtada, pira de vez e
sai da banda. Isso muda totalmente o direcionamento que até então elas estavam
tendo. Começam a compor músicas
sem imaginar uma bateria acompanhando. Abraçaram então uma tendência da época em soar
propositalmente anti-rock e com isso lançam o estranho mas não menos genial “Odyshape”.
As estruturas das músicas são mais livres, lembrando free jazz. A incorporação
de instrumentos africanos (balafone e Kalimba) dão um tom tribal, étnico. "Odyshape"
lembra dois gêneros desgraçados: world music e new age. Isso se esses gêneros
fossem feitos por não-yuppies. A mixagem também é estranha:
baixo, percussão e efeitos sonoros em primeiro plano, lembrando muito as
maluquices dub do mestre jamaicano Lee Perry. Robert Wyatt, artista de
vanguarda, ex-Soft Machine e colega de gravadora delas, toca a maioria das
percussões no álbum. Um álbum excelente, que mesmo não tendo o apelo instântaneo do
anterior, vale tudo ser descoberto.
Depois disso lançam "Kitchen Tapes", gravado ao vivo em New
York e lançada em cassete pela Roir, um dos principais selos independentes americanos.
Um grande disco.
"Moving" (1984) é uma
continuação de Odyshape, porém mais dançante e com um jeito menos ‘espiritual’. Incrível como elas se especializaram nesse
tipo de som exótico, bem próprio, que só pode ser classificado como “The
Raincoats Music”.
A banda acaba logo após e vem um período de ostracismo
total, que só é quebrado em 93, quando a major Geffen relança (por sugestão de
Kurt Cobain, fã incondicional) a discografia do grupo. Com esse incentivo elas retornam aos palcos e
gravam um ep e um álbum ("Looking in the
shadows") nos 90’s que são bem
interessantes e possuem a participação de Steve Shelley, do Sonic Youth.
Desde então continuam na ativa e participando de festivais underground,
mesmo com todos os apesares (Gina e Ana da Silva tem uma relação de amor e ódio
e muitas vezes saem na porrada). Recentemente Birch disse que vai fazer um
documentário sobre o grupo. Pussy Power!
Baixe aqui - Raincoats (1980)
Texto excelente, Eric. Meus parabéns!
E realmente, Raincoats é isso e mais um pouco. band sensacional, de uma musicalidade incrível.
Valeu, Ramilton. Massa que tu curtiu. Realmente é um som único, uma coisa muito própria.