Peter Laughner: Coração das Trevas


Dentre as muitas injustiças e faltas de reconhecimento da história do rock, poucos casos são tão tristes quanto ao do genial Peter Laughner. Músico, compositor, poeta, escritor, "scenester", Peter foi uma das melhores cabeças do punk rock americano dos 70’s e foi esquecido tanto por bíblias como o livro “Mate-me por favor” quanto  pelas bandas em que ele foi diretamente responsável pela criação.
 
Peter Laughner foi  integrante e idealizador do lendário grupo pré-punk  Rocket From The Tombs, que das suas cinzas se originaram duas bandas cruciais para o punk rock: Dead Boys e Pere Ubu. 
 
Peter Laughner (primeiro da esquerda para a direita) com o Rocket From The Tombs
Para se ter idéia do moral do cara, sua morte foi lamentada pelo lendário crítico musical Lester Bangs. Bangs era extremamente iconoclasta e desdenhou da morte de medalhões como Elvis Presley e John Lennon. Mas sente profundamente a perda de Laughner em um de seus textos.
 
Da mesma forma que Bangs, Laughner também era adepto do estilo “gonzo”: encher a cara de cachaça e droga, aprontar um monte de merda e escrever suas experiências no ritmo do fluxo de pensamentos. Um exemplo disso é uma crítica sua do disco “Coney Island Baby” do Lou Reed, para a revista Creem. Peter conta que não gostou do disco, ficou alcoolizado por 3 dias, quebrou a casa toda e caiu na porrada com a esposa, por causa de um vidro de diazepam. A vida dele foi sempre assim: passional, exagerada e decadente; culminando na sua morte precoce aos 24 anos de pancreatite aguda.
 

Os registros gravados do Laughner são seu material com o Rocket From the Tombs e a irrepreensível coletânea “Take The Guitar Player For A Ride”. “Take...” é um clássico perdido, sendo metade das gravações  magníficos lo-fi  de voz e violão e a  outra metade elétrica, abordando suas participações em várias bandas anteriores ao Rocket From The Tombs e covers.
 

Há influências gritantes de Bob Dylan ("Cynderella Backstreet" é a melhor música que o Dylan não fez), belas homenagens às suas inspirações literárias (Baudelaire e à escritora americana Sylvia Plath), baladas junkie perfeitas ("Only Love Can Break your Heart" e "Amphetamine") e versões fenomenais tanto para clássicos que ajudou a compor (“Ain’t no fun”, “Life Stinks”) quanto para de compositores alheios (“Calvary Cross” do inglês Richard Thompson, “Baby’s On Fire", do Brian Eno).
 
A proposta de Laughner era fazer canções com letras profundas e "cabeça" como as do Lou Reed mas com a intensidade emocional do Iggy Pop nos Stooges. Conseguiu! Para quem gosta do estilo “trovador solitário” de artistas como  Dylan, Reed, Leonard Cohen e o agora cult Sixto Rodriguez,  Peter Laughner é um prato cheio. E também o é para os admiradores de uma boa sujeira de forma geral. Aprecie sem nenhuma moderação. Como faria o Mestre!

A Fúria Melódica do Hüsker Dü


                   
O Hüsker Dü foi uma das bandas mais visionárias e corajosas do harcore americano, desafiando um público que tendia a valorizar um purismo exagerado e avesso a maiores inovações musicais. Onde havia a preocupação com o sentimento tribal, o “movimento”, eles faziam música para indivíduos. Onde havia ortodoxia com ênfase em uma postura agressiva, o som deles era confessional e expunha medos, fraquezas e dúvidas. Até esteticamente o Hüsker Dü era bem peculiar: um sujeto com cara de frentista, outro bigodudo com jeitão de viado  mais um riponga com cabelão que tocava bateria descalço não era lá o que se esperava de uma típica imagem punk!
Logotipo do HD; o círculo simboliza a banda, as três listras horizontais os integrantes e a vertical a corrente comum de pensamento 

O Hüsker Dü surge em ’79, tendo a liderança dividida pelo guitarrista/vocalista Bob Mould e pelo baterista/vocalista Bob Mould e que eram habilmente amparados pelo baixista Grant Norton. Amavam a "blank generation" e os Ramones acima de todas as coisas,  mas também eram fortemente ligados nas melodias doces e texturas psicodélicas feitas na década anterior.
No início só tiravam covers, e é de um desses covers, “Psycho Killer” dos Talking Heads, que surgiu o nome da banda.  No verso “psycho killer qu'est-ce que c'est" eles não sabiam pronunciar a parte em francês e faziam brincadeiras com isso. Alguém disse ”Psycho Killer, Hüsker Dü” e o nome pegou. Hüsker Dü é o nome de um jogo de tabuleiro para crianças e que em sueco significa “você se lembra?”.
Hüsker Dü: o jogo
Após assistirem a um show do Black Flag, enxergam no hardcore algo novo e decidem seguir também por esse caminho. Logo gravam o ep ao vivo “Land Speed Records” e o LP “Everything falls apart”. Esses dois discos são um mar de feedback, vocais abafados e bateria atropelando tudo, sendo muito distantes do estilo que os consagrou. Mesmo seguindo uma fórmula mais convencional de muitas bandas do período, o Hüsker Dü era “diferente”.
                                            

Já logo no início essa diversidade começou a  se manifestar e passaram a se sentir desconfortáveis com o aspecto doutrinário do hardcore. Isso se reflete no próximo lançamento “Metal Circus”, onde aparecem os traços mais fortes da personalidade musical do Hüsker Dü: ênfase nas melodias e na criação de canções marcantes. A mórbida balada “Diane” (que recebeu muitos covers através dos tempos) é o maior exemplo disso. “Real world” e “It’s not fun anymore” são críticas a utopia e falta de senso de humor que povoavam os guetos punk/hc.
                           

No ápice da ambição criativa, decidem fazer o primeiro disco duplo conceitual de hardcore, contando a história de um adolescente que foge de casa, tem todo tipo de experiências e retorna “transformado” pelo conhecimento adquirido. Álbuns duplos e ainda por cima óperas-rock eram a antítese do que o Punk Rock representava, sendo associados com a megalomania da década de 70. Mas tão logo "Zen Arcade" foi lançado em 1984, redefiniu todo um estilo, sendo considerado até hoje um dos discos mais representativos já feitos. Em músicas vigorosas como “Something I learned today”, “Chartered trips", “Whatever”, “Broken home, broken heart”  não ficam nada a dever ao melhor do poppy punk praticado por Ramones e Buzzcocks, suas maiores referências. Mas o ecletismo é a principal característica de "Zen Arcade": um impressionante registro só de voz e violão de doze cordas ("Never talk to you again"), uso de piano ("Monday will never be the same") e momentos bastante noise e psicodélicos (“Hare krsna” e os quase 14 minutos de “Reocurring Dreams). O Minutemen (da SST Records também) se inspirou nessa idéia de um disco duplo e assim “Zen Arcade” e “Double Nickels and dimes” foram lançados no mesmo dia, uma estratégia de marketing que ajudou a SST a se afirmar como uma gravadora de vanguarda.
                                          

O Dü lançava discos quase que em seguida, e logo veio "New Day Rising". A faixa-título, com um verso só berrado por Mould e Hart, era um  grito primal, um mantra afirmando que um “novo dia estava nascendo”. A vida na estrada era estressante e turbulenta. E o dinheiro escasso. Os temas foram abandonando a rebeldia adolescente e adentrando um universo adulto, com ênfase em decepções e crises emocionais causadas em sua maior parte por rupturas amorosas. O fato de os  dois compositores principais da banda viverem relacionamentos homossexuais (não entre si, como sempre negaram) num tempo em que isso era bem mais estigmatizado e a AIDS era o “câncer gay” com certeza intensificou sentimentos de rejeição, descrença, abandono e inadequação, que eram a maior parte do universo temático do grupo.
 
Com a inflação de egos promovida  pela imprensa (sempre foram queridos pela crítica) nesse período se acentua uma rivalidade entre Mould e Hart por controle artístico. Mould representava o lado mais carregado emocionalmente e pessimista, enquanto as composições de Hart tinham um tom mais leve, pop e esperançoso. Algo bem semelhante ao que acontecia com a relação Lennon/McCartney.
                            
"Flip your wig", de 1985, disco predileto de Mould, marca o  último lançamento deles por um selo independente e também a opção por um som mais limpo e power pop, que daria o direcionamento adotado pela banda dai para frente.
 
Assinam com a Warner e gravam dois discos pela major. “Candy Apple Gray”  é sensivelmente mais fraco que os três discos anteriores, mas contém algumas de suas melhores músicas: ”I don’t wanna know if you are lonely”, ”Too far down”, “Dead set on destruction” e “Hardly getting over it” são as que eu gosto mais.
Em 1987 vem mais um disco duplo e também uma obra-prima:  “Warehouse: songs and histories”. Com a relação bastante desgastada entre Mould e Hart, "Warehouse" aparenta às vezer ser dois álbuns solo de dois artistas diferentes, mas isso não tira o brilho de canções irretocáveis e atemporais. É também seu último registro. O mais belo canto do cisne que se tem notícia.
O cansaço provocado pela falta de estrutura das turnês, as crises internas (agravada pelo vício de Hart em heroína) e o suícidio do empresário da banda precipitaram o fim da banda na turnê de “Warehouse”.
                                 

Mould e Hart seguem com carreiras-solo atualmente. Ainda se odeiam e não perdem qualquer oportunidade de se atacarem na imprensa. Norton virou dono de restaurante e faz participações esporádicas no meio musical.
O Hüsker Dü é um caso de banda que encerrou atividades no seu ápice e é um das poucas que podem se gabar de não  ter gravado nada ruim. Sua influência nos caminhos seguidos pelo underground é gigantesca: Nirvana, Pixies, Foo Fighters, Green Day tem uma dívida enorme com eles. Infelizmente não colheram os frutos a que faziam juz e assistiram centenas de influenciados e imitadores ficarem milionários com o som que eles desenvolveram. Em  geral  essa é a injusta  sorte dos pioneiros!

Throbbing Gristle: What a Day!

“Aqui estão três acordes, agora forme uma banda’ é a exortação punk. Já começa errado porque começa com acordes. Eles estão dizendo: seja como todo mundo, siga a tradição, você tem que aprender a tocar. Por que não dizer: forme uma banda e não importa como ela soe ou mesmo se vai soar de alguma maneira, você pode até ficar parado em silêncio por uma hora na frente da plateia e ver o que acontece?”

Peter Christopherson, Genesis P-Orridge, Tutti Fanni, Chris Carter
                      
Continuando na trilha do som industrial, que até agora deu a tônica das minhas postagens aqui no blog, escrevo hoje sobre o primeiro grupo industrial de fato (até a gravadora deles se chamava Industrial Records). O Throbbing Gristle foi a primeira banda a usar música eletrônica para trazer desconforto e estranhamento.

O uso da arte como terapia de choque para destruir condicionamentos sociais recebidos desde a infância e a crença em um “Self” puro, o “Eu” original, livre de influências externas sempre foi o que guiou a música e a vida do líder do Throbbing Gristle, Genesis Breyer P-Orridge.
 
Nascido em 1950 em Hull, na Inglaterra, com o nome de Neil Megson, na adolescência P-Orridge descobre  os Rolling Stones e por conseguinte o rock n’ roll. Mergulha então na literatura beatnik e nos grupos mais radicais da contracultura da década de 60, indo viver em comunidades.
 
Genesis P-Orridge circa 1970
Nesse universo de párias e dropouts encontrou a gostosa Cosey Fanni Tutti, que logo virou sua namorada e integrante do grupo artístico multimídia que ele montou em seguida, o COUM Transmissions.  A música era calcada nas propostas de vanguarda que o Frank Zappa e Captain Beefheart vinham desenvolvendo com a mistura de rock, free jazz e humor negro; mas eram suas performances grotescas e atentatórias ao senso comum o que rendia publicidade: Genesis pendurava cabeças de galinhas mortas no pênis, se masturbava conjuntamente com sua namorada em um vibrador de duas pontas, mastigava vermes e cuspia no público dentre outros números que no geral envolviam fluidos corporais e exploração de tabus.Viviam na mais absoluta penúria, sendo que o “P-Orridge” do nome artístico do Genesis é uma referência a uma marca de aveia, que nos tempos de vacas macérricas era o único alimento que eles tinham disponível para mantê-los de pé. Para ajudar a  pagar as contas, Tutti posava nua para diversas revistas pornográficas.
 
Genesis e Cousin em apresentação do COUM Transmissions
Cansado das apresentações teatrais, em 1975 Genesis decide se concentrar somente na música, formando o Throbbing Gristle (gíria para pênis ereto), junto com Cosey e mais Peter ‘Sleazy’ Christopherson, que havia trabalhado como assistente de designer gráfico nos estúdios Hypgnosis e Chris Carter, técnico de iluminação. Cada integrante escolheu justamente o instrumento em que tinham menos habilidade e/ou identificação. Não usavam acordes. Não tinham baterista.
 
Os primeiros shows do Throbbing Gristle coincidem justamente com a explosão do Punk Rock inglês, sendo frequentados e louvados por todo o pessoal do Bromley Contingent, mas Genesis considerava o Punk saudosista e previsível demais e não quis se alinhar. “Não existe anarquia e música ao mesmo tempo” ele dizia e em cima disso abriram mão da melodia e ritmo, dando ênfase na natureza dos sons em si, trabalhando em cima de tons, frequências e camadas de efeitos, como forma de criar hipnose e reações extremas na platéia (até mesmo a defecação espontânea).
 
Os shows do grupo tinham uma natureza tensa e imprevisível. Com uso intensivo de bases pré-gravadas em fitas k-7e vocais muitas vezes em forma de spoken word, as músicas eram criadas e gravadas instantaneamente. “Discipline”, sua obra mais conhecida, pode ser o exemplo mais claro desse estilo de fazer música totalmente ao vivo.
 
                                 

A discografia do Throbbing Gristle é extensa e confusa porque praticamente gravavam (e lançavam) todo material que produziam. Os discos mais representativos são: "Second Annual Report", "Third Annual Report", "20 Funk Jazz Greats" e "Heathen Earth".
 
Causavam repulsa na sociedade inglesa, o que pode ser conferido nas mensagens da secretária eletrônica da banda, expostas na faixa “Death Threats”. Letras tratando de sadomasoquismo ("Discipline"), misoginia ("We hate you, little girls"), pedofilia ("After cease to exist"), masturbação ("Five Knucle Shuffle"), câmaras de gás ("Zyklom B. Zombie") e assassinos em série ("Very Friendly") fizeram deles verdadeiras desgraças sociais. As capas dos álbuns também geravam controvérsia, como a de “Second Annual Report”, em que aparece uma menina impúbere mostra a calcinha numa foto de calendário. Outra digna de nota, “20 Jazz Funk Greats” a banda posa como um  grupo 'easy listening' em uma típica capa de “maiores sucessos”. O que complementa ainda mais a ironia é que essa fotografia foi tirada em  Beachy Head, um penhasco da Inglaterra e que é um dos lugares mais utilizados por suicidas no mundo!
 

Em '78, há uma ruptura entre o casal Genesis/Cousin. O motivo é que Cousin trocou P-Orridge por Chris Carter. Genesis tenta se matar ingerindo tranquilizantes e bebida alcóolica, o que é narrado na letra de “Weeping”: 'Você não me viu chorando pelo chão. Você não me viu engolindo meus comprimidos.'
 
Para tentar evitar que o grupo se dissolvesse e ajudar na melhora do estado mental de Genesis, entra na história Monte Cazazza, que se transforma numa espécie de quinto integrante e mentor intelectual do grupo. Artista avant-gard fissurado em "survivalism" (não existe uma tradução exata em português mas é quem espera e se prepara para qualquer tipo de cataclisma) e armamentos, Cazazza  transforma o TG em uma  banda quase fascista.  Genesis rapa a cabeça e o TG passa a se utilizar de camuflagem e idumentárias militares. No auge da paranóia, que antes era apenas estética, começaram a vender armas, uniformes e kits de sobrevivência pelos correios e idelizaram mesmo criar um grupo paramilitar de seguidores.
 
Monte Cazazza
Com isso a  banda ainda sobrevive por mais um tempo mas as relações entre Genesis, Tutti e Carter estavam insuportáveis prá se continuar, finalizando suas atividades em 1981. Em uma declaração em seu último show, na Califórnia, Genesis disse que “a missão havia terminado”, que o TG havia levado o rock a sair das raízes do blues agrário e criou um novo tipo de musica (ou anti-música) apropriado para a sociedade pós-industrial. Da dissolução do Throbbing Gristle surge dois grupos: Genesis e Peter Christopherson montam o Psychic TV e Cosey e Carter o Chris & Cosey.

Em 2004 houve uma breve e fabulosa reunião dos membros originais para alguns shows, rendendo o fenomenal box de dvd’s “TGV: The Video Archive of Throbbing Gristle”, que contém o melhor dessas apresentações e mais material da década de 70. Infelizmente Peter Christopherson morreu em 2010, inviabilizando outra reunião com os membros originais.

TG nos 00's
O Psychic TV continua em atividade e Genesis continua sendo figura das mais expressivas no underground, sempre aparecendo de alguma forma na mídia alternativa, escrevendo prefácios de livros ou aparecendo em documentários. Suas entrevistas são brilhantes, mostrando boa argumentação e lucidez que impressionam; ainda mais na sua condição de sobrevivente, como ele próprio se denomina. Com o surgimento da internet seu trabalho e do Throbbing Gristle estão sendo descobertos por uma nova geração de fãs e alcançando um nível de reconhecimento que até então era inédito. Antes (bem) tarde do que nunca, com toda a certeza. Industrial Music For Industrial People!