Sérgio Sampaio: Não há nada mais bonito do que ser independente



A trajetória musical de Sérgio Sampaio é das mais inusitadas dentro da nossa música popular, ou impopular, como queiram. Incompreendido na época em que viveu, a cada dia ganha mais fãs e admiradores via internet. Entrando no inconsciente coletivo popular com um hit bombástico (“Eu quero é botar meu bloco na rua”, de 1972) e nunca mais conseguindo repetir o êxito ou mesmo manter uma carreira regular, ganhou o título de “maldito” tanto pelos excessos etílicos/cocainômanos quanto por uma poesia que privilegiava os aspectos mais sombrios da vida e da humanidade.
 
Filho de pai maestro, cantor e compositor, Sérgio desde cedo teve interesse por música. Seu relacionamento tempestuoso com o pai marcou toda sua vida e carreira. Isso mais o isolamento geográfico (capixaba de Cachoeiro de Itapemirim, terra do Roberto Carlos e longe  dos grandes centros culturais) podem dar uma pista das origens da personalidade hedonista e arredia do artista.
 
Sociedade da Grã Ordem Kavernista
A grande guinada na vida de Sérgio foi sua mudança para o Rio de Janeiro no final da década de 60 , onde conheceu as melhores mentes da contracultura nacional e virou hippie. Tendo gravado alguns compactos e dono de uma imagem bastante dropout chamou a atenção do até então produtor musical Raul Seixas. Raul gravava artistas bregas e românticos mas queria desesperadamente fazer um disco anárquico e avant garde, nos moldes do que o Frank Zappa havia fazendo lá fora. Além de Sérgio, Raul também recrutou uma bichona, Eddy Starr; e uma sambista de interpretação nada convencional, Miriam Batucada. O quarteto gravou o  antológico “Sociedade da Grã Ordem Kavernista”, um dos grandes tesouros perdidos do nosso udigrudi.
 
Raul Seixas e Sérgio Sampaio durante a gravação do primeiro álbum-solo de Sérgio
A amizade de Raul com Sérgio rendeu muita bebedeira, pó e putaria pelas ruas do Rio de Janeiro, com Raul uma vez afirmando que perto de Sérgio Sampaio, ele se sentia um coroinha. Além disso Raul Seixas também produziu o primeiro LP solo de Sérgio, “Eu quero é botar meu bloco na rua”, que aproveitava o título do compacto de sucesso lançado por Sérgio um pouco antes . É o disco mais rock dele e também o mais instantaneamente fácil de gostar.  A base musical de Sérgio Sampaio eram o samba e os boleros de Nélson Gonçalves mas o resultado rock ficou orgânico, como mostram a mais raulseixista do disco, “Viajei de trem”, repleta de imagens poéticas drogadas e a empolgante “Filme de terror”, primor de interpretação, letras e arranjos. Há também influências do  Caetano Veloso tropicalista por todo o álbum, como em “Leros e boleros”. Sua relação de amor e ódio com seu pai rendeu duas obras-primas: a misógina “Cala a boca, Zebedeu”, regravação do velho e “Pobre meu pai”, um acerto de contas com o passado dos mais dolorosos. A capa também chama atenção, com Sérgio posando de vampiro andrógino e o logotipo do seu nome em vermelho pingando sangue. Sérgio, grande fã de Edgar Allan Poe, Baudelaire, Augusto dos Anjos foi talvez nosso maior gótico.
 

Em 1976 mais um disco, “Tem que acontecer”, em que a faixa-título é uma lamentação a mais um fim de relacionamento amoroso fracassado (ele teve muitos). Esse disco é mais ligado ao samba e à tradição dor de cotovelo. “Velho bandido” é a grande obra-prima do disco, onde não se sabe onde termina o personagem e a persona do próprio Sérgio.  
 

Somente em 1982 é que ele gravaria  um novo LP, chamado de “Sinceramente”, um disco menos carregado emocionalmente e que pode ser interpretado como uma tentativa de sobriedade (“Homem de 30”). Lançado de forma independente, é um disco, mais intimista que os anteriores e cheio de grandes pérolas (“Nem assim”, “Tolo fui eu” , o lindo arranjo de sintetizadores de “Meu filho, minha filha”...).
 

“Sinceramente” foi também seu último LP, passando daí por diante a sofrer cada vez mais as consequências de uma vida de excessos e é também o momento mais crítico de sua decadência. Fazendo shows esporádicos (Sérgio não tinha organização para gerir sua carreira) e mergulhando em vícios e paixões, lançava materiais esparsos. Apesar disso, planejava seu grande renascimento das cinzas, o que nunca aconteceu. Bastante irregular, alternava grandes êxitos, lotando algumas importantes casas de show pelo Brasil e outros de miséria, necessitando da ajuda de amigos e parentes para sobreviver.
 
Sua situação com as drogas o levaram a sucessivas internações. A última foi em 1994, em que morreu de pancreatite aguda.
 

Deixou considerável material inédito gravado, que é compilado por Zeca Baleiro e se transforma no CD “Cruel”como tentativa de manter viva a memória do artista e que contém também algumas de suas melhores músicas, como “Roda Morta”, uma de suas mais conhecidas e apreciadas.
 

Em tempos de trabalhos musicais rasos e ralos, ouvir algo tão denso e pungente tem efeito devastador, pro bem e pro mal. Qualquer tempo gasto com Sérgio Sampaio não é em vão. Autoral, entregou a alma como poucos e  fez sua música ter outra dimensão.  Não fazendo concessões e não dando trégua ao ouvinte, é um dos contatos mais íntimos através da música que se possa ter. É o máximo que podemos suportar de treva e beleza.

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